Sobre Gregório de Matos e ser Brasileiro
© Rev. Moacir Gabriel
Teólogo
Psicanálista
Gregório de Matos Guerra é seu nome completo. Baiano, viveu de 1636-1696. O sobrenome Guerra, ainda que desconhecido do público geral, é sintoma do caráter de Gregório. A guerra mais severa que travou foi a que travou consigo, dentro d'alma:
"Têm-se acentuado os contrastes da produção literária de Gregório de Matos: a sátira mais irreverente alterna com a contrição do poeta devoto; a obscenidade do 'capadócio' (José Veríssimo) mal se casa com a pose idealista de alguns sonetos petrarquizantes. Mas essas contradições não devem intrigar quem conhece a ambiguidade da vida moral que servia de fundo à educação ibérico-jesuítica. O desejo de gozo e de riqueza são mascarados formalmente por uma retórica nobre e moralizante, mas afloram com toda brutalidade nas relações com as classes servis que delas saem mais aviltadas. Daí, o 'populismo' chulo que irrompe às vezes e, longe de significar uma atitude antiaristocrática, nada mais é que válvula de escape para velhas obsessões sexuais ou arma para ferir os poderosos invejados". (Bosi)
As palavras de Bosi dão-nos um bom exemplo de como a análise literária pode andar de mãos dadas com a psicanálise; mas Bosi não é nosso tema. O tema é Gregório, e sua alma encontrou na literatura o campo de batalha para lutar a a 'luta pela expressão'. (Figueiredo)
A luta dentro d'alma de Gregório não era maniqueísta. E seguindo os passos de Bosi - no que se refere ao flerte com a psicanálise - eu diria que dentro d'alma de Matos, tal qual na alma de todo ser humano, havia uma ambivalência. A literatura que Matos produziu era ambivalente, e suponho que nada expressa melhor essa ambivalência do que o contraste entre as sátiras e os lirismos por ele performados. Digo performados porque a lira e a sátira estavam presentes não apenas no que escrevia, mas no modo como vivia. Se quisermos pensar a ambivalência na obra de Gregório devemos escapar à tentação de submetê-la ao conceito de dualismo generalista que usam para descrever parcamente as obras barrocas. Não estou certo de que o dualismo entre trevas e luz ou entre céu e inferno sejam capazes de explicar a ambivalência da alma de Guerra.
Portanto, devemos ser parcimoniosos nas considerações a respeito de tão especial autor. Sou muito afeito, dessarte, ao modo honroso como Sílvio Romero o trata:
"O poeta era um homem impressionável pelas belezas do mundo e da sociedade; tinha em si o gérmen das efusões amenas, doces, virginais [...] nem há outro poeta que se avantaje por esta face, no século XVII, dentre os da língua portuguesa, a Gregório de Matos. Mas é pelo lado humorístico e satírico que o baiano foi um fator nacional. Aí dá ele entrada a certos termos puramente brasileiros." (Romero)
Decerto é que o presente tempo faz deveras necessário repensarmos o que é ser brasileiro. Afinal: passaria nossa identidade por uma diferenciação de raças ou dizer-se brasileiro deveria, por definição, dizer-se mestiço?
"Aqui não há nobres, nem brancos, nem pretos, nem vermelhos, nem alaranjados... O contrário é desconhecer o que foi a colonização do Brasil. Gregório Guerra é genuíno iniciador de nossa poesia lírica e de nossa intuição étnica. O seu brasileiro não era o caboclo, nem o negro, nem o português; era já o filho do país, capaz de ridicularizar as pretensões separatistas das três raças". (Romero)
Em Goiânia, na praça cívica, há um monumento que arroga estar celebrando as três raças. Toda vez que fito aquela escultura pergunto: por que devemos celebrar a diferença? Por que não celebrar o que temos em comum? Aceitar as diferenças parece-me razoável, mas celebrá-las parece-me hipocrisia, parece ser um disfarce ao incômodo que o outro causa. Ora, quando falamos de direitos iguais, falamos baseados no que nos torna iguais, não no que nos faz diferentes. O fetiche pelo exótico está adoecendo a gente: só é digno de piedade aquilo que é diferente de nós, talvez por isso estejamos preferindo ter animais de estimação em vez de termos filhos à nossa imagem e semelhança; talvez por isso o pobre que desperta comoção seja aquele que é bem diferente e/ou distante da gente. Estamos ávidos por aquilo que nos falta e nada gratos pelo que somos. O que nos acostumamos a apelidar de empatia é egoísmo refinado, um egoísmo politicamente correto: a única dor a ser ouvida é a dor que se comprova dor de minoria; minoria é o farisaísmo de nossos dias.
Para os fariseus de nossos dias ser brasileiro é ser minoria, e se você não é minoria e nivela a causa das minorias com as causas dos demais, você tem mente de "colonizado". A ironia é que tudo isso, toda essa lorota, a gente importa, imita. Por sinal, a tendência a imitar está corroendo os movimentos sociais brasileiros por dentro. Não satisfeitos com quem somos, ou melhor, culpados por sermos um povo único - plural por definição -, a gente importa até as causas pelas quais devemos lutar. Então o que é ser brasileiro?
"Ser brasileiro não é descrever o Pão de Açúcar, a Tijuca, a Ilha da Maré, ou a cachoeira de Paulo Afonso. Cenas destas ninguém as descreveu melhor do que Dranmor, poeta alemão, que residiu entre nós. Ser brasileiro é sê-lo no âmago do espírito, com todos os nossos defeitos e todas as nossas virtudes. É ter em si um quê indefinível mas real, que é só nosso, que ninguém mais tem. Este caráter nacional não está ainda bem determinado, por causa de uma de suas tendências - a imitação, que é justamente um de seus elementos; mas um tal que obsta que ele se determine claramente. Nas criações populares é onde se pode hoje bem divisar o caráter nacional". (Romero)
E quando temos entre nós gente que acha a arte europeia e a norte-americana superiores, o que fazer? E quando temos entre nossos criadores populares um movimento que é apenas o outro lado do eurocentrismo, a saber, o afrocentrismo? O que fazer quando nosso desejo de gozo e de riqueza é mascarado por uma retórica nobre e moralizante, mas que aflora nas relações sociais? O que fazer com o populismo chulo - ora de esquerda, ora de centro, ora de direita - que irrompe às vezes e, longe de significar uma atitude antiaristocrática, nada mais é que válvula de escape para velhas obsessões? Ora, o que fazer? Não sei. Mas quero crer que a gratidão por ser quem somos seja o caminho a ser percorrido. Está na hora de pararmos de sentir culpa por sermos brasileiros.
Gregório satirizou todas as tentativas de afirmação a partir de uma pureza racial. Para Matos, o brasileiro não pode declarar-se branco, pardo ou negro; o brasileiro é o que é: indefinível, mas real. Arrisco-me a dizer: a ambivalência d'alma de Gregório de Matos Guerra é a ambivalência do seu povo: um povo que está sempre a guerrear consigo.